Esta história começa em julho de 1946, com mensagens espirituais psicografadas[1] recebidas em Belo Horizonte. A primeira mensagem tratava do surgimento de um movimento nacional para contribuir com o progresso espiritual do Brasil. Na mesma cidade, em outubro de 1949, foi fundado informalmente o primeiro Grupo da Fraternidade Espírita (GFE) do país, o Grupo da Fraternidade Espírita Irmã Scheilla. Em 1956 já havia dezesseis GFE´s nos Estados de Minas Gerais, São Paulo e Espírito Santo (OLIVEIRA, 1998).
Os GFE´s vivenciam a filosofia do Movimento da Fraternidade (MOFRA) e, ao mesmo tempo, participam do Movimento Espírita conduzido pela Federação Espírita Brasileira (FEB). Esses grupos realizam ações a partir das seguintes diretrizes, nomeadas como Programa de Trabalho Permanente (PTP):
a) Ensino da Doutrina Espírita e do Evangelho segundo o Espiritismo;
b) Assistência Social Espírita;
c) Tarefa de Passes;
d) Formação de Ambientes Espiritualizantes.
Em novembro de 1956, foi fundada a Organização Social Cristã Espírita André Luiz (OSCAL) para gerir as ações do Movimento da Fraternidade. Buscando reunir os GFE´s e fortalecer o PTP, aconteceu em 1958, em São João da Boa Vista – SP a 1ª Semana da Fraternidade, encontro bienal com a participação dos Grupos da Fraternidade, o que acontece até os dias de hoje.
Muitos sonhos e dúvidas surgiram nos trabalhadores dos GFE´s em relação à como edificar tal obra, no entanto, muitas outras mensagens espirituais indicavam os caminhos a seguir, incluindo a localização da nova comunidade, que deveria ser instalada no planalto central.
Logo após essas mensagens, membros da OSCAL procedentes de várias cidades e contando com o apoio do governador do Estado de Goiás na época, sobrevoaram terras em diversos municípios do Estado como Formosa, São Domingos e Posse, mas foi na região da Chapada dos Veadeiros que encontraram as terras que tinham os requisitos desejados: fácil acesso, clima ameno e água em abundância.
A área rural de Alto Paraíso de Goiás foi escolhida para acolher a nova comunidade.
O intuito da comunidade era de prestar assistência social às crianças em situação de risco em um modelo de acolhimento familiar chamado, à época, lares – família. A proposta era de que cada casal cuidasse de oito crianças que eram adotadas pela instituição.
Nomeada inicialmente como Cidade da Criança, a inauguração oficial da comunidade aconteceu em 23 de dezembro de 1963.
O casal Romilda e Andalécio Rinco, que trabalhavam no Grupo da Fraternidade Espírita Irmão Flácus em Espírito Santo do Pinhal, interior de São Paulo, idealizaram desde 1958, ao lerem as primeiras notícias sobre a construção de uma cidade para crianças órfãs ou abandonadas, que iriam morar naquela comunidade.
Após lerem um boletim da OSCAL chamando por pioneiros para construírem a Cidade da Fraternidade, o casal mudou-se com seus dois filhos (Divaldo com quatro anos e Marcus com dois anos). Romilda ao escrever um relato sobre esse período contou que “vendemos parte de nossos bens materiais, carregamos uma Kombi com objetos mais necessários e aqui chegamos em maio de 1964”.
No mesmo ano em que chegaram à comunidade, no mês de julho, aconteceu a 5ª Semana da Fraternidade, que reuniu 1.000 pessoas de várias partes do país na pequena comunidade. Os barracões construídos para receber os/as fraternistas serviram de alojamento, salão para reuniões e alimentação.
Em fevereiro de 1966, Romilda Rinco, juntamente com outra moradora, Sebastiana Arantes, iniciaram em um dos barracões construídos para a Semana da Fraternidade a escola para seus próprios filhos e uma criança que já vivia na região. Em pouco tempo a notícia se espalhou e famílias se mudaram para matricularem seus/suas filhos (as), pois não havia escolas nas proximidades. A primeira turma tinha 30 estudantes de várias idades e; algumas crianças que moravam até a 50 km de distância ficavam alojadas durante a semana na beira dos rios da região.
Andalécio sugeriu o nome: Escola Primária Humberto de Campos[2], “um barraco coberto com palhas de indaiá, bancos e mesas de tábuas rústicas, paredes de adobe, sem janelas nem portas, mas com um nome de muito respeito” (Romilda Rinco, relato por escrito).
Somente em 1969 as primeiras salas de alvenaria foram construídas, assim como a biblioteca e um pequeno auditório. “A mudança dos alunos do barraco para o prédio novo foi algo emocionante” (Romilda Rinco, relato por escrito).
A escola teve seu nome alterado para Educandário Humberto de Campos (EHC) e passou a oferecer até a 8ª série. Os/as professores (as) eram formados por meio de projetos públicos de formação de professores (as) como o Minerva (formação EAD via rádio).
Na década de 1970 já havia uma boa produção agropecuária: feijão, arroz, soja, trigo, folhagens e gado leiteiro. Em 1973, 50 crianças adotadas pela comunidade viviam nos lares-família e esta foi uma década de muitas construções de alvenaria como a do Grupo da Fraternidade Espírita Irmã Veneranda, caixa d`água, refeitório coletivo, lavanderia, ampliação da escola e galpão para oficinas.
Não havia energia elétrica na época, então foi iniciada em 1978 a construção de uma usina hidrelétrica na região para abastecer a Cidade da Fraternidade, sendo que na década de 1980 a distribuidora estadual de energia elétrica passou a atender a região.
Em 1980, já havia por volta de 100 crianças adotadas vivendo na comunidade e o EHC tinha 300 estudantes. A escola cumpria a matriz curricular do Estado de Goiás com apoio de livros didáticos. Ary Oswaldo Leite da Silva relatou em entrevista que além das disciplinas gerais, constava Educação para o Lar, Técnicas Comerciais, Artes Industriais, Técnicas Agrícolas, aulas práticas de horta e viveiro e a língua estrangeira era o Esperanto. Todas as sextas-feiras havia a hora cívica e apresentações artísticas dos/as estudantes. O transporte dos que não moravam na própria comunidade era de trator e carreta. O Educandário também tinha aulas de alfabetização de adultos, das 18h às 20h.
Foi na década de 1980 que foi inaugurado o teatro da escola, coordenado pelo diretor Ary Oswaldo Leite da Silva, com a produção de diversas peças teatrais que ainda são lembradas pelos que estudaram na escola entre 1980 e 1994. Iris Arantes, que estudou e também trabalhou nesse período, relata que:
O ensino era muito inovador, deixava a gente pensar, buscar. Não tinha aquela coisa chata de escola, era muito divertido. Ele [Ary] fazia de tudo, era diretor, mas também era muito ligado em arte, fazia teatro de todo jeito que você imaginar, datas comemorativas, gincanas, fanfarra, concursos literários, olimpíadas. Era muito movimentado, muito rico. Depois que ele foi embora, a gente tentava sempre fazer além do básico, o lúdico. Nunca ficou só na parte teórica das disciplinas, sempre teve essa preocupação, cuidado de proporcionar outras coisas (Iris Arantes, entrevista).
A escola ficou muitos anos sem coordenação pedagógica (a primeira coordenação foi em 2008), sem a exigência de um Projeto Político Pedagógico e nem mesmo formação superior dos/as professores (as), muitos davam aulas com apenas o ensino fundamental ou médio. Não havia educação infantil instituída no Brasil até 1988, e no Educandário as crianças eram atendidas por um projeto chamado de lar apoio, que funcionou durante sete anos com uma professora voluntária, Telma Alves Borges, que chegou a cuidar de 30 crianças. A faxina da escola era por conta dos/as educadores(as) e estudantes que faziam mutirão uma vez por semana.
A vida era muito simples […] os professores preparavam as aulas a partir de seus próprios conhecimentos, de sua prática, do que aprendeu com outra pessoa, de filmes que assistia, livros que lia […] um professor passava sua experiência para o outro […] não se seguia o currículo referência, não tinha cultura de seguir o currículo, não havia preocupação em pegar a matriz, saber quais eram os conteúdos. Qualquer pessoa que chegava na cidade minimamente letrada era chamada para ser professor (Iris Arantes, entrevista).
Muitos que iniciaram na escola sem formação específica fizeram faculdade e pós-graduação posteriormente e seguiram a carreira de licenciatura trabalhando no Educandário e nas cidades da região.
O modelo dos lares-família funcionou até o início da década de 1990, sendo que mais de 300 crianças foram atendidas no período. Dos anos 90 em diante, o modelo de atenção à criança em lares-família entrou em discussão e passou-se um período com diversas alterações na Cidade da Fraternidade e a releitura da própria missão institucional.
Até 1998 havia na região, além do Educandário, uma escola municipal que funcionava no Assentamento Esusa. Nesse ano, essa outra escola foi fechada e os alunos foram transferidos para o EHC e assim começa o convênio com o município e o transporte público dos/das estudantes. “Até essa época, alguns alunos que moravam muito longe, o que impossibilitava o transporte diário, ficavam durante a semana alojados em casas de comunitários da Cifrater” (Alcione Trindade, entrevista). Nesse mesmo ano foi criada a casa do Estudante em Brasília, uma moradia para que os/as jovens do EHC terminassem seus estudos do Ensino Médio.
O EHC atuou, durante sua história, em grande medida, com uma metodologia de ensino convencional. No entanto, sempre buscou ir além da grade curricular, com projetos que buscaram dialogar com a realidade local – como marcenaria, produção de doces, horta, pomar, padaria, temperos, apicultura, jardinagem, agroecologia – e ampliar o universo cultural dos estudantes, com viagens para outras localidades, festas e diversos eventos culturais. Por meio da rede de colaboradores do EHC e de parcerias com entidades públicas, como a Universidade de Brasília (UnB Cerrado), foram desenvolvidas várias atividades como oficinas, encontros e cursos.
Alice Yuquie Yabiku foi professora e diretora da escola entre 1998 e 2016, atuando na comunidade desde 1981, relata que fica muito feliz ao ver as crianças e jovens descobrindo o mundo, “ver as mudanças na região, de 1981 para hoje, pessoas mais empoderadas, donas de seu nariz, que podem resolver seus próprios problemas e que conquistaram uma situação melhor para suas vidas” (Alice Yabiku, entrevista).
A partir do inicio dos anos 2000, a formação superior passou a ser exigida pelo governo do Estado e foi criado o programa Licenciatura Plena Parcelada, em que os/as professores (as) tinham atividades a distância e aulas presenciais pela Universidade Estadual de Goiás (UEG) as sextas e sábados, na cidade de Formosa-GO.
A escola sempre esteve muito ligada à comunidade Cidade da Fraternidade, com a participação ativa dos/as comunitários (as). “O Educandário é como um coração que pulsa na comunidade, que pulsa em nós e continua pulsando dentro da nossa proposta de trabalho”, afirmou Alcione Elias Trindade, que trabalhou na escola entre 1993 e 2018 como professora e diretora.
Ainda de acordo com Alcione, a região sempre foi muito carente na área educacional e a estrutura física do Educandário era além do padrão da maioria das escolas de área rural do Estado.
Entre 2007 e 2011 foi implantado no período do contraturno o projeto Rosa da Esperança, idealizado pela diretora Myriam Pontes da Silva Pinto, em que professores e comunitários de maneira voluntária promoviam diversas atividades como aulas de música, atividades esportivas, teatro, artesanato, informática e inglês.
Em novembro de 2003, houve a chegada de 300 famílias do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), com o objetivo de ocupar as terras da região.
O EHC recebeu os/as filhos (as) dos/as acampados (as) e os conflitos iniciais pelo desacordo de ideais entre os membros do movimento social e os membros do movimento espírita em questão, foram dissolvidos lentamente no espaço educativo.
No final de 2003, o Educandário tinha apenas 72 estudantes e estava com dificuldades em manter os convênios com Estado e município. Iris Arantes trabalhava na escola como secretária nessa época e contou que com a chegada do movimento social, os/as funcionários (as) da escola foram até o acampamento e matricularam 180 crianças em único dia, para estudarem em 2004. O ano letivo teve início com 320 crianças matriculadas e tudo na escola teve de se reestruturar para receber os/as novos (as) estudantes.
Para Iris Arantes, essa foi a fase mais difícil e desafiadora da comunidade, “Num primeiro momento, as crianças viam os professores como inimigos e os professores os viam assim, como os invasores. […] A gente morria de medo e não batia de frente com os familiares das crianças, a gente não reagia e isso acabava desarmando os conflitos”. A proposta da comunidade de acolher, respeitar e cuidar da infância prevaleceu.
Apesar dos conflitos, a presença do MST trouxe muitos benefícios para a cidade. A vinda de várias famílias e crianças incentivou o retorno da assistência social, resgatando e ampliando o objetivo original da comunidade. Não se tratava mais de simplesmente abrigar crianças, mas famílias inteiras. A região se tornou muito mais plural e aberta para novas iniciativas, atraindo apoiadores com ideologias e filosofias diferentes (CAMPOS, 2020, p. 15).
A Fazenda Paraíso, que estava na posse da CIRATER/OSCAL, após litígios de natureza jurídica entre a OSCAL e o Governo Federal, passou ao Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA). As terras onde estava a Cidade da Fraternidade e que a OSCAL as teriam comprado, de fato pertenciam a União e, por conseguinte, ficaram liberadas para o INCRA instalar o que é hoje o Assentamento Sílvio Rodrigues, com 119 lotes em uma área de aproximadamente quatro mil hectares. O INCRA efetuou contrato de comodato com a OSCAL, o que permitiu à Cidade da Fraternidade permanecer nas terras dando prosseguimento às suas ações sociais e espirituais.
A pluralidade de pessoas da região implicou na transformação social da escola, o local passou a ser também um centro social do assentamento (CAMPOS, 2020, p. 29). Com o passar dos anos, moradores (as) do assentamento, ex-estudantes do Educandário se tornaram professores (as) da escola e hoje a mesma possui educadores (as) que moram na Cidade da Fraternidade, no Assentamento Sílvio Rodrigues e também em Alto Paraíso.
Em 2008, foi aberto o Ensino Médio no Educandário. Os principais trabalhos da Cidade da Fraternidade atualmente estão vinculados ao Educandário Humberto de Campos que atende 230 estudantes (média de estudantes matriculados nos anos de 2018, 2019 e 2020) da Educação Infantil ao Ensino Médio e desde 2017 conta também com a Educação de Jovens e Adultos.
No final de 2016 a escola foi escolhida para ser pioneira na cidade de Alto Paraíso de Goiás na implementação do 4º Objetivo de Desenvolvimento Sustentável (ODS) da Organização das Nações Unidas (ONU) – que trata sobre Educação.
Alto Paraíso de Goiás foi designada, pelo governo do Estado de Goiás em 2016, para ser modelo de sustentabilidade nacional com a implantação dos 17 ODS da ONU. Para tanto, houve a movimentação de diversas secretarias, conselhos, entidades públicas e privadas. Especificamente na área educacional, a Secretaria de Estado da Educação, Cultura e Esporte, através do Ciranda da Arte[3], passou a implementar o Instituto de Pesquisa, Ensino e Extensão em Arte Educação e Tecnologias Sustentáveis (IPEARTES), cujos princípios são: Sustentabilidade, Arte Educação, Cultura de Paz, Educação Integral e Direitos Humanos e Diversidade.
Ainda em 2016 foi realizado no EHC o Encontro Jovem de Alto Paraíso, um evento que possibilitou a escuta atenta dos sonhos e desafios de jovens do município. Foram 120 jovens e quatro dias intensos de atividades em que a comunidade da Cidade da Fraternidade esteve envolvida: pintamos a escola, plantamos árvores e somamos forças em torno do desejo de uma educação melhor para todos/as.
Após o Encontro Jovem foi iniciado o processo de transformações pedagógicas na escola. O projeto pedagógico do Educandário Humberto de Campos trabalha por uma revisão dos espaços educativos, ampliando-os para além das salas de aulas, incluindo casas de comunitários (as), associações, padaria e cozinha comunitária, espaços externos, por exemplo, embaixo de árvores, praças e quadras, dentre outros; revendo a relação educador (a) – educando (a), de maneira que os dois estejam em processo de constante troca e aprendizado, respeitando e valorizando os diferentes saberes e também implementação de uma gestão participativa.
Texto adaptado:
POSSEBON, Alessandra Marques. Dialética do Educar: Contradições e superações de uma prática educativa transformadora – a experiência do Educandário Humberto de Campos. Orientador Patrícia Lima Martins Pederiva. Tese (Doutorado – Doutorado em Educação). Universidade de Brasília, 2021.
Referências bibliográficas:
CAMPOS, Artur França. Saberes e sabores da roça – Feira do Assentamento Silvio Rodrigues na Cidade da Fraternidade. Orientador: Jaime Gonçalves Almeida. Trabalho de Conclusão de Curso (Arquitetura e Urbanismo). Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de Brasília, Brasília, 2020.
OLIVEIRA, Célio Alan Kardec. Movimento da Fraternidade. [s.n.] Belo Horizonte, 1998.
[1] Psicografia, segundo a doutrina Espírita codificada por Alan Kardec, é a capacidade de determinados médiuns em receber mensagens de pessoas desencarnadas (KARDEC, 2002).
[2] Humberto de Campos foi escritor e jornalista e é reconhecido pela doutrina espírita como o autor espiritual irmão X, cujas obras foram psicografas pelo médium Francisco Cândido Xavier.
[3] Centro de estudos e pesquisa que promove formação em arte para educadores e estudantes da rede pública de ensino do Estado de Goiás, com sede em Goiânia.