Localizado na área rural de Alto Paraíso de Goiás, o Educandário Humberto de Campos (EHC) não é apenas uma escola: é parte integrante de uma história de compromisso espiritual, educativo e social. Sua trajetória está intrinsecamente ligada à comunidade cristã espírita Cidade da Fraternidade (CIFRATER) e ao Movimento da Fraternidade (MOFRA).
As raízes espirituais: o Movimento da Fraternidade (MOFRA) a partir de 1946
A história que levou à criação do EHC começa, de fato, em julho de 1946, em Belo Horizonte, com a recepção de mensagens espirituais que serviram como inspiração e orientação para a criação de um movimento de alcance nacional — o Movimento da Fraternidade (MOFRA) — com o objetivo de colaborar com o progresso espiritual do Brasil. Essas mensagens também direcionaram a fundação de uma obra educativa e assistencial destinada a acolher crianças desamparadas e permitir o renascimento de espíritos que buscavam um novo sistema de vida. Essa obra viria a ser a Cidade da Fraternidade.
Esse período inicial contou com figuras centrais como Rafael Américo Ranieri e Jair Soares, nas manifestações espirituais que levaram à formação dos primeiros Grupos da Fraternidade.
A concretização da obra inspirada pelo MOFRA exigiu uma estrutura institucional de suporte. Em 1956, foi fundada a Organização Social Cristã Espírita André Luiz (OSCAL), com o propósito específico de gerir as ações do Movimento da Fraternidade e seus Grupos da Fraternidade. A OSCAL é a entidade mantenedora da Cidade da Fraternidade e do Educandário Humberto de Campos. A partir de então, o MOFRA intensificou o esforço para a criação da obra coletiva que se tornaria a Cidade da Fraternidade. O estatuto da OSCAL expressa a filosofia do Movimento da Fraternidade, cuja função primordial é coordenar ações voltadas à edificação e consolidação dessa comunidade — tanto no sentido físico quanto no sentido mais amplo, envolvendo os Grupos da Fraternidade espalhados pelo Brasil.
A comunidade que acolheria a futura escola foi fundada em dezembro de 1963. Em 20 de dezembro daquele ano, nascia oficialmente a Cidade da Fraternidade, inicialmente chamada de Cidade da Criança, com o propósito de acolher, em lares-família, crianças órfãs ou sob tutela do Estado. Localizada na Chapada dos Veadeiros, a comunidade foi criada por um grupo pioneiro e, desde o início, é marcada por um profundo compromisso espiritual e educativo, funcionando como polo de trabalho cooperativo para diversos grupos espíritas vinculados ao MOFRA.
Com a comunidade estabelecida, surgiu a necessidade de prover educação para as crianças acolhidas, bem como para os filhos das famílias que se mudavam para a região. Assim nasceu a Escola Primária Humberto de Campos, que funcionava em um dos barracões construídos para a 5ª Semana da Fraternidade, realizada em 1964. Inicialmente, atendeu os filhos do casal pioneiro Romilda e Andalécio Rinco, além de uma criança local.
A notícia da nova escola espalhou-se rapidamente por uma região carente de instituições educacionais, atraindo famílias que se mudaram para matricular seus filhos. A primeira turma contava com 30 estudantes de idades variadas. Crianças vindas de localidades distantes chegavam a se alojar na região durante a semana para frequentar as aulas. Romilda Rinco, uma das fundadoras do EHC, relatou que os primeiros tempos foram de improvisação e coragem: os pais chegavam a cavalo, trazendo mantimentos, enquanto uma estrutura coletiva era erguida com esforço e solidariedade.
A escola foi formalmente registrada em 1970, e sua denominação atual — Educandário Humberto de Campos (EHC) — foi adotada em 1975, após reformas na estrutura do ensino. Desde sua gênese, o EHC sempre se destacou por ser uma escola diferenciada, marcada pelo esforço de muitos profissionais dedicados.
Crescimento, desafios e pluralidade comunitária
A comunidade e a escola continuaram a crescer. Na década de 1980, com a chegada da energia elétrica e o aumento populacional, o EHC já atendia centenas de alunos e passou a incorporar disciplinas práticas como Técnicas Agrícolas, Educação para o Lar, além de atividades como hortas e viveiros — reafirmando o compromisso da escola em ir além do currículo formal.
Um episódio marcante ocorreu em 2003, com o encontro entre o Movimento da Fraternidade e o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) na região. Apesar das tensões iniciais relacionadas à ocupação de terras, essa aproximação enriqueceu a convivência local, tornando a comunidade mais plural. Os filhos de membros do MST passaram a estudar no EHC, fortalecendo o caráter inclusivo da escola.
Estudos sobre a Educação do Campo e outras abordagens pedagógicas começaram a ser realizados a partir de 2013, no Grupo de Estudos em Ciências da Educação Eurípedes Barsanulfo. Assim se iniciou uma caminhada em busca de uma educação mais alinhada às necessidades do campo e às perspectivas de desenvolvimento humano integral.
Ainda em 2013, a Confraternização de Mocidades Espíritas do Movimento da Fraternidade (Comemofra) — encontro anual que reúne jovens de todo o país — adotou como tema “Sustentabilidade: Educação para o Exercício da Liberdade”, inserindo reflexões sobre permacultura e alternativas educacionais na agenda do MOFRA.
O educador José Pacheco visitou o EHC em 2014 e 2015. Em 2016, a escola foi reconhecida pela Secretaria de Educação de Goiás como instituição com perfil inovador, sendo incluída em um projeto piloto para a implementação dos 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) no município de Alto Paraíso de Goiás. Em agosto de 2017, o EHC passou a oferecer a modalidade de Educação de Jovens e Adultos (EJA), inicialmente no período noturno. Em 2018, essa proposta passou a operar no formato de alternância.
Transformações pedagógicas e reeducação docente
Um marco fundamental na consolidação da proposta pedagógica do EHC foi a elaboração do novo Projeto Político Pedagógico (PPP), em 2018. Embora a escola já realizasse, historicamente, práticas compatíveis com a Educação do Campo, foi nesse documento que o princípio passou a ser oficialmente reconhecido como diretriz pedagógica.
Entre 2018 e 2019, a escola vivenciou um processo intenso de transformação, com a implementação de novos dispositivos pedagógicos, entre os quais destacam-se:
- Tutoria: espaço de construção do projeto de turma e de integração do conhecimento em uma perspectiva cooperativa e comunitária;
- Registro de Aprendizagem: estudantes registram suas aprendizagens, relações significativas e dificuldades, promovendo a autoavaliação e auxiliando o planejamento docente;
- Assembleias e gestão democrática: incentivo à tomada de decisões coletivas;
- Trabalho por projetos: articulação entre teoria e prática;
- Valorização da estética e das linguagens artísticas, com foco em identidades culturais, por meio de disciplinas eletivas em Artes.
Nesse período, o EHC reforçou seu compromisso com os saberes locais e as trocas intergeracionais. Projetos como o Banco de Sementes e a Casa de Sementes Tia Bezinha exemplificam esse movimento, conectando os estudantes à biologia, à ecologia, à cultura e à história da região.
Em 2019, foi realizado o Intercâmbio de Educadores, um projeto de visitas a escolas transformadoras em outras regiões do Brasil. Essa experiência teve um profundo impacto sobre os educadores, reforçando a compreensão e a crença na viabilidade da educação transformadora. Os participantes registraram suas vivências em diários de campo, relatos e um seminário, os quais deram origem ao livro Educador Transformador.
Resiliência e reinvenção na pandemia e além
O EHC também firmou parcerias importantes, como com o Instituto Ser Integral, que apoia a formação docente em letramento e numeramento. Em junho de 2019, a escola sediou a edição regional da Conferência Nacional de Alternativas para uma Nova Educação (CONANE) na Chapada dos Veadeiros.
Com a chegada da pandemia, em março de 2020, surgiram desafios inéditos. A necessidade de lidar com ferramentas digitais e processos remotos exigiu reinvenção contínua. Os educadores se adaptaram rapidamente, mantendo contato com os estudantes por meio de celulares e outros meios acessíveis. A pandemia foi encarada como um divisor de águas — um período de dificuldade que também estreitou os vínculos com as famílias e evidenciou o desenvolvimento conjunto de pais e filhos.
Em 2022, com o retorno presencial, os desafios envolveram a retomada da convivência, os cuidados com a saúde e a gestão das sequelas emocionais deixadas pelo isolamento. O EHC procurou integrar as lições aprendidas durante o ensino remoto, especialmente no fortalecimento da parceria com as famílias. A proposta de educação transformadora, já em curso, encontrou bases sólidas em um núcleo docente alinhado, embora ainda exigisse esforço, compromisso e constante reeducação.
Conquistas recentes: corpo, mente e inovação pedagógica
A partir de 2017, o EHC passou a dar maior atenção à educação física e ao desenvolvimento do corpo e do espírito por meio do esporte. Atividades esportivas se intensificaram no cotidiano da escola, tanto em práticas regulares quanto em projetos interdisciplinares, consolidando o esporte como instrumento de socialização, disciplina, cuidado com o corpo e valorização da saúde física e emocional.
Já entre os anos de 2023 e 2025, a escola investiu no aprofundamento da formação docente voltada ao uso da inteligência artificial na educação, com foco em metodologias mais criativas, análise de dados e personalização da aprendizagem. Esse movimento de reeducação dos educadores tem sido fundamental para adaptar-se aos novos tempos, sem abrir mão dos princípios humanistas.
Nesse mesmo período, foi criada a Sala de Apoio Psicopedagógico, um espaço estruturado de escuta, acolhimento e mediação de processos de aprendizagem, voltado ao atendimento de crianças com dificuldades pedagógicas e/ou emocionais. Esse cuidado especializado fortalece o compromisso da escola com o desenvolvimento integral de seus estudantes.
Presente e futuro de uma escola viva
Nesse período, o EHC deu continuidade ao seu processo evolutivo, buscando atender às necessidades da comunidade. Um trabalho de resgate histórico da escola, realizado durante as Olimpíadas de Humanidades em 2017, reforçou o papel fundamental do EHC na região desde a década de 1960.
Ao integrar práticas sustentáveis e princípios da Educação do Campo, o EHC inspira outras escolas a se tornarem agentes de mudança, preparando seus estudantes para os desafios do século XXI. A escola e sua mantenedora têm o compromisso com o desenvolvimento social e sustentável da região do Assentamento Sílvio Rodrigues, dentro de suas possibilidades.
A história do EHC — construída por muitas mãos, corações e sonhos de pessoas vindas de diversas partes do país — é um testemunho de resiliência cultural e ambiental. É uma escola que acolhe, dialoga, resiste e transforma, pavimentando um caminho em direção à emancipação humana e à construção de um Bem Viver verdadeiramente coletivo.
Esse processo de transformação — não linear — é, na verdade, um movimento contínuo de superação de contradições. Assim, a jornada do Educandário Humberto de Campos, iniciada na inspiração espiritual de 1946, concretizada na comunidade de 1963 e na escola de 1966, segue viva e em transformação para além de 2025, impulsionada pela fé, pela luta e pela visão de uma educação que liberta e prepara para a vida em seu território singular.